Parte 4: Os deuses dos mundos escondidos: Plutão e Marte
Mulher-Maravilha é um produto audiovisual eminentemente feminino. Não apenas porque é o primeiro filme de super-heróis com uma heroína mulher, mas por conta de todas as questões que discutimos nos posts anteriores: a origem de Diana Prince entre as Amazonas e o que esse mito representa sobre a condição feminina em sociedades patriarcais, os arquétipos femininos da Lua e de Lilith que são mobilizados pela personagem e pela atriz Gal Gadot, a nuance netuniana das relações que se estabelecem entre as personagens principais, etc.
Algumas críticas destacaram que, no filme, Steve Trevor tem um papel e uma importância muito maior do que tinha nos quadrinhos, o que pode demonstrar uma necessidade da indústria cinematográfica hollywoodiana de tentar agradar ao típico público de filmes de super-heróis: meninos adolescentes e jovens homens em geral. Segundo essa leitura, a preponderância da força feminina na narrativa poderia assustar os egos dos expectadores, de acordo com a expectativa dos produtores da obra – em sua maioria homens. Até que ponto essa intenção é consciente e baseada em dados sobre a audiência ou apenas especulações inconscientes, não tenho como avaliar. Provavelmente, a narrativa mais plausível está em um ponto entre ambas as hipóteses.
Também já comentei alguns artigos que consideram o final do filme ruim, por conta da dificuldade de aceitar que o poder de Diana tenha se revelado apenas após a morte de Steve ou pela caracterização insuficiente dos antagonistas, especialmente do vilão Marte (Ares), que a heroína enfrenta ao final. Segundo Natália Bridi, do Omelete, “Ares está no centro da transformação de Diana em Mulher-Maravilha, mas o longa fica entre tratá-lo como um inimigo comum e um ser multifacetado, sem sucesso em nenhum dos lados”. Pablo Villaça destaca, por sua vez, “o terrível e batido monólogo do vilão ao tentar convencer a protagonista a mudar para seu lado” como um dos pontos baixos do filme.
Apesar disso, os arquétipos do masculino que são mostrados na produção também são interessantes para minha análise, especialmente na forma como se relacionam com a heroína. Não vou me deter na relação entre Diana e Steve, que já foi assunto do post passado e será do próximo, provavelmente. Esse texto está centrado em uma perspectiva astrológica do vilão: Marte, ou na nomenclatura adotada no filme e que descende dos gregos, Ares, o Deus da Guerra.

Ares X Marte
O principal antagonista de Diana Prince no filme é Marte (Ares), o Deus da Guerra, interpretado pelo ator David Thewlis. É interessante perceber que o arquétipo de Marte – nome da divindade adotado pelos romanos – tem algumas diferenças em relação ao Ares grego. Howard Sasportas nos informa que Ares não é muito sutil, é imoderado e faz o papel de idiota em várias situações. “É fácil descobrir suas intenções, e por isso, ludibriá-lo” (Greene & Sasportas, 1995, p.17). Guttman & Johnson (2005, p.106-107) também afirmam que, apesar de filho legítimo de Zeus e Hera, Ares era odiado pelos pais e temido pelos outros deuses.

Até mesmo Homero, cuja Ilíada glorifica as artes da guerra, não fala muito bem do deus que regia essas artes mortais: é chamado ‘assassino Ares’, ‘violento Ares’, e mesmo ‘Ares, assassino manchado de sangue e arrasador de cidades’. Sua própria irmã Atena o chama ‘uma criatura da ira, feita de mal, um mentiroso de duas caras’. E quando o deus da guerra é ferido em batalha pelo herói Diomedes, voa enraivecido de volta ao monte Olimpo para queixar-se a seu pai. Mas Zeus lhe diz: “Não te lamentes a mim, seu mentiroso de duas caras. Para mim, és o mais odioso dentre todos os deuses do Olimpo. Guerras, brigas e lutas são caras a teu coração”.
Além da irmã Eris – discórdia – que o acompanhava nos campos de batalha, Ares tinha dois ajudantes: o Terror e o Medo. Não era um estrategista como Atena e frequentemente “partia para a batalha de cabeça quente e no momento errado” (Guttman & Johnson, 2005, p.107), sendo raramente honrado na Grécia. Como ressaltam Greene & Sasportas, alguns astrólogos vêm nele o impulso cego para a autoafirmação, sem preocupação com as consequências dos seus atos ou qualquer consideração com os outros (1995, p.17).
Já para os romanos, Marte (Ares) só ficava atrás de Júpiter (Zeus) no panteão dos deuses. “Era considerado o patriarca de Roma, sendo pai de Rômulo e Remo, os fundadores da cidade. Para os romanos, que glorificavam os heróis de guerras e as artes ‘marciais’, Marte era um deus heroico: seu nome era invocado no campo de batalha” (Guttman & Johnson, 2005, p.108). Segundo Greene & Sasportas, ele não era apenas o deus da guerra, mas também era associado à fertilidade, ao crescimento e ao vir-a-ser (1995, p.18).

Relacionado, portanto, aos princípios da República, Marte era acompanhado por Honos (honra) e Virtus (virtude), o que significa que o trabalho, a vocação e a parceria seriam formas de definir e expressar melhor o Self, de um ponto de vista do arquétipo inconsciente (Greene & Sasportas, 1995, p.20). Segundo os autores, Marte representa a agressividade saudável, a proteção que desenvolvemos contra os ataques externos, o desejo de crescer e honrar sua verdadeira natureza, com autonomia e iniciativa.
Forças inconscientes em cena
Marte no mapa natal representa a iniciativa, o desejo, a motivação e o impulso para a ação, que levam o indivíduo rumo à individualidade. Segundo Guttman & Jonhson, o planeta tem associações com o Sol, pois representa uma ação vigorosa, e também com Plutão, pois rege a guerra e a destruição. Nesse sentido, os autores prosseguem afirmando que Marte “trata do poder e da determinação de que precisamos para matar nossos demônios interiores” e, por isso, “as forças de Marte emergem de nosso próprio subterrâneo pessoal (Plutão)” (2005, p.109).
A relação entre sexo e agressão e desejo e ação ficam claras no arquétipo de Marte. Não à toa o planeta vermelho do sistema solar leva seu nome, pois ele representa o fogo ardente da paixão ou da raiva. Como ressaltam Greene & Sasportas, há 14 mudanças fisiológicas que são comuns à raiva e à excitação, e somente quatro que são diferentes (1995, p.13). Segundo eles, Marte existe para que obtenhamos independência e crescimento, rompendo com os limites impostos por quem tenta nos dominar ou proteger em demasia.

Assim, faz todo o sentido que seja Ares aquele quem revela a Diana que ela própria é a “God Killer”, isto é, alguém com poder suficiente para matá-lo. “Só um Deus pode matar outro Deus”, diz ele durante a batalha final entre os dois. Mais adiante na cena, ao perceber a morte de Steve enquanto está imobilizada e ouvir o deboche de Ares sobre o acontecimento, Diana explode e libera sua força em uma explosão que assusta até mesmo o próprio antagonista.
Em outras palavras: a motivação para a ação, a partir de Ares e da dor mobilizada por Netuno e Vênus, fazem com que a heroína reaja e libere seu poder de destruição que lhe era inconsciente até então. Uma ótima imagem para o arquétipo de Plutão, aliás. É Marte-Ares quem provoca a faísca da explosão, quem estimula a libertação do poder plutoniano até então contido, que libera a raiva que estava reprimida e que tem origem numa frustração sexual, de certo modo.
A raiva marciana, contudo, advém do Ego, enquanto a raiva do Id, do inconsciente, é profunda e plutoniana (Greene & Sasportas, 1995, p.39). Se a primeira é a raiva de quem se levanta e existe quando se tem um ego para afirmar e defender, a raiva plutoniana é desamparada, desprotegida, difusa, global. Como afirmam Guttman & Johnson, “Marte corresponde ao guerreiro interior” (2005, p.111), mas sua energia não tem senso de direção. Os demais planetas e o posicionamento por signos é que auxiliam nesse direcionamento dessa energia interna. A libido, portanto, nos termos psicanalíticos.
Áries ou Escorpião?
No filme, o vilão Ares encarna visualmente o arquétipo de Marte, planeta regente do signo de Áries, ao criar sua armadura de ferro fundido vermelho incandescente a partir da explosão gerada por Diana. Afinal, o deus da Guerra se alimenta das explosões de raiva e do fogo gerado por elas para iniciar a batalha, improvisando soluções no meio do caos. Na cabeça, parte do corpo correspondente a Áries, ele coloca um capacete com cornos de carneiro, o animal que representa o primeiro signo do Zodíaco.

Contudo, se o Marte ariano é “óbvio” e “sem sutilezas” (Greene e Sasportas, 1995, p.38), e parte para o ataque de peito aberto, durante a narrativa não é essa a conduta de Ares. Ao longo do filme, vemos a ação estratégica de alguém que dissimula suas verdadeiras intenções, semeia a discórdia e a intriga e se disfarça em uma aparência vulnerável e fraca para obter poder. Até o momento em que se revela na batalha, Ares se apresenta estratégico, calculista e enganador, muito mais conectado, portanto, com o arquétipo escorpiano, signo que também é regido pelo planeta Marte e tem a co-regência de Plutão.

Não é à toa que Marte e Plutão são regentes de Escorpião na astrologia contemporânea, afinal Plutão é considerado a oitava maior de Marte. Ambos são associados aos chacras ou centros de poder que governam os instintos e a sobrevivência. Mas, segundo Guttman & Johnson, há algumas diferenças importantes:
Marte era, oficialmente, um deus da guerra; expressa a energia em nível muito consciente e físico. Plutão também tem um espírito guerreiro, mas está incrustado no mundo subterrâneo ou inconsciente e é portanto libertado de forma esporádica e desajeitada nas épocas em que a pessoa está menos capaz de controlá-lo. Em uma palavra, essa é a chave para Plutão. Ele desafia o controle (2005, p.217).
O vilão, ao tentar convencer Diana a apoiá-lo na destruição da humanidade, destaca os crimes que já foram cometidos em seu nome. “Eu sussurro as ideias para eles, mas não faço com que as usem”, ressalta. Ao lembrar os piores feitos dos homens, a natureza sombria e voltada à agressão deles, ele assimila o arquétipo escorpiano ao afirmar que: “Queria mostrar aos deuses como a criação do meu pai era má. Eu não sou o Deus da Guerra, Diana. Eu sou o Deus da Verdade”, diz ele. Em outros termos: ele só queria revelar o que os homens escondem.

Ao final da batalha, Diana arranca o capacete dele com os cornos de carneiro (Áries), e incorpora por completo o arquétipo de Plutão, ao destruí-lo. A transformação pela qual ela passa durante o seu processo de autoconhecimento é um tema universal e que dá humanidade à personagem. Um processo extremamente conectado também com a narrativa mítica de Perséfone – não por acaso, a mulher de Plutão e rainha do subterrâneo. É uma descida ao mundo dos mortos, por meio da dor das perdas, e do rapto representado por sua saída intempestiva da ilha de Temiscira, acompanhada por Steve, com quem compartilha o amor e o sexo.
Perséfone e a descida ao subterrâneo
Contrariando algumas críticas ao filme, ouso interpretar a explosão de Diana não apenas como uma reação à morte de Steve, ainda que o fato possa ter sido um catalisador importante dentro de uma narrativa hollywoodiana convencional. Antes disso, ela já havia presenciado a morte de centenas de pessoas salvas poucas horas antes, e mostrado seu desespero frente à impotência de evitar o fato. Ela já havia lutado contra homens e visto sua tia Antíope, que lhe treinara, ser assassinada por eles. Ela já havia abandonado sua terra e sua mãe, e presenciado a tristeza que isso lhe causara. Por outro lado, conversando com os amigos de Steve e passando alguns momentos com os aldeões salvos, ela experimentara a empatia, a simpatia, a ternura e a alegria da convivência humana. E, por fim, ela havia acreditado nas mentiras contadas por Ares e sido enganada por ele. Não seria tudo isso motivo suficiente para a explosão final?

Creio que o produto cinematográfico, restrito às convenções impostas pelo gênero e pelo fato de ser uma produção voltada ao entretenimento e ao lucro, talvez não seja o mais adequado para desenvolver uma narrativa arquetípica com a profundidade solicitada por Plutão. Mesmo assim, percebo algumas nuances no filme que mostram como essas energias conseguiram se fazer presentes nele.
O diálogo de Diana com sua mãe Hipólita em sua partida de Temiscira é exemplar do argumento mitológico de Perséfone. Ao perceber que não tem como evitar a partida de Diana, Hipólita lhe diz: “Tenha cuidado no mundo dos homens. Eles não te merecem. Você foi o meu maior amor. Hoje você é a minha maior tristeza.” A fala revela o sentimento de Deméter (Ceres) ao perder a filha raptada por Plutão (Hades) e levada para o mundo subterrâneo e sombrio da guerra dos homens. Ainda que soubesse que a filha havia, afinal, sido criada para enfrentar Ares, a mãe fica desconsolada com sua partida.
Psicologicamente, o mito se refere ao processo de autoconhecimento por meio da relação primordial das mulheres com suas mães. O rapto, que representa a iniciação sexual e o estabelecimento de relacionamentos afetivos com outros sujeitos, significa o desligamento da filha em relação à mãe, sua busca por autonomia e independência emocional. Segundo Socorro do Prado, “se mãe e filha conseguirem elaborar o luto, a filha não precisará se defender da presença da mãe, nem a mãe terá a necessidade de controlar todos os passos da filha”. Nesse processo, contudo, é necessário estabelecer uma relação com os conteúdos internos sombrios, penetrar as raízes da própria dor, descer ao inferno da inconsciente para amadurecer.
Não por outro motivo, Diana atende ao chamado do amor – do amor sexual, mas também do amor incondicional pela humanidade. É Steve quem lhe serve de guia ao mundo humano e lhe “rouba” da mãe. Em outros termos, é a relação com ele, e com o mundo dos homens por meio dele, que inicia seu processo de transformação em Mulher-Maravilha. Obviamente, como acontece frequentemente com os heróis em sua jornada, é um amor netuniano-plutoniano que é vivenciado, isto é, um amor conectado com perda, morte, guerra, disputa, sacrifício. E não cabe ao amor, exatamente, essa tarefa de transcendência e transformação?
Interessante perceber ainda que, no filme, Diana sai de um mundo completamente feminino para um mundo predominantemente masculino, em que ela é a única protagonista mulher. Como ressaltam Guttman & Johnson, “a descida ao mundo subterrâneo representa a aquisição da ‘sabedoria da serpente’, que definimos como uma sabedoria essencialmente feminina” (2005, p.221). Não estranha, portanto, que vários astrólogos tenham dificuldade de definir a energia plutoniana como masculina, porque é sempre o arquétipo feminino que faz a descida. Nos mitos, os homens que fazem essa descida acabam tendo vários problemas – Orfeu, Hércules, Teseu. Apenas Mercúrio (Hermes) e Dionísio conseguem com algum sucesso, e não à toa ambos apresentam qualidades andróginas. “A descida plutoniana, embora possa ocasionalmente ser experimentada por homens, é principalmente um caminho feminino” (Guttman & Johnson, 2005, p.222).
Astrologicamente, poderíamos dizer ainda que a heroína se moveu da Casa IV, regida pela Lua, e que diz respeito à família e ao lar, em direção à Casa X, regida por Saturno, que trata da vocação e da realização material no mundo. Ela deixa de ser a Princesa Diana para se converter na Mulher-Maravilha, alguém que tem uma missão social importante a cumprir.
E nessa jornada, além da eletricidade absorvida do próprio irmão e antagonista Ares, revelando a influência uraniana da conexão consigo mesma e da criatividade no momento de maior dificuldade, ela conta com a ajuda das presenças mercurianas e venusianas de Sameer, Charlie, Chief e Etta. São os amigos que lhe dão apoio e auxílio no processo de se tornar consciente de quem ela é, fazendo com que ela encontre na camaradagem e nas relações sociais informações importantes para seu processo.

Ao final da batalha com Ares/Marte/Plutão, Diana contempla o nascer do sol: a consciência sobre o próprio poder conquistada por meio da dor, a luz que ilumina o mundo interno transformado e que renasce da destruição anterior. O fechamento do filme não poderia ser outro: “Esta é minha missão. Para sempre”, nos diz ela.
Referências
GREENE, L.; SASPORTAS, H. A Dinâmica do Inconsciente. Seminários sobre Astrologia Psicológica. São Paulo: Pensamento, 1995. 10ª edição.
GUTTMAN, A.; JOHNSON, K. Astrologia e Mitologia. Seus arquétipos e a linguagem dos símbolos. São Paulo: Madras, 2005.
5 respostas para “As variadas expressões do feminino no filme Mulher-Maravilha: uma análise mitológico-astrológica IV”