Crônica de um dia qualquer em que as deusas tomaram as rédeas

Hoje de manhã, ao chegar ao pilotis do meu prédio para a caminhada que tenho tentado fazer com alguma regularidade nos últimos meses, percebi que tinha colocado a roupa errada. Como diria a minha mãe, eu estava muito “fresca”, apenas com uma regata e uma bermuda. Pensei que o ventinho frio seria bom, porque eu não suaria tanto, e continuei.

Esse não é o pilotis do meu prédio, mas passa a ideia do que seja um pilotis.

Apressei o passo para que o frio não se instalasse. Poucas pessoas caminhando, vento nas pernas, uma manhã de sol. Ótima ocasião para fazer uma caminhada mais puxada e amenizar um pouco as dores nas costas e nos ombros pelas horas e mais horas ao computador, pelo estresse da pandemia, pela tensão de não saber quanto poderei me vacinar.

Vassoura em punho

Já estava a umas quatro quadras de casa quando passei por uma faxineira de um prédio comercial que se aproximava exatamente da calçada por onde eu passaria em alguns segundos. Ela vinha em minha direção com uma vassoura na mão esquerda e um sorriso no rosto, que eu pude ver por cima da máscara frouxa em seu queixo.

Como nos livrarmos do aprisionamento do olhar alheio?
Photo by R. Martinez on Unsplash

Como tenho feito nessas situações nos últimos meses, apressei o passo, chegando quase a correr, para passar pela calçada antes que ela se aproximasse muito de mim e eu ficasse ao alcance de seus perdigotos, sabe-se lá com que conteúdo.

Ela me olhou franzindo a testa, sorriu meio de lado e gritou: “caminhando assim você vai emagrecer rapidinho”.

Como sempre acontece nessas situações, meu Marte em Peixes, que vinha concentrado na própria respiração e distraído do mundo real, despencou de seu frágil equilíbrio de bailarino e sorriu por baixo da máscara. Como se sorrir para o inimigo diminuísse o grau de afetação pela pancada recebida.

Gritei de volta, já distante: “Deus te ouça. Deus te ouça!”.

Deuses magros?

Em 30 segundos, enquanto continuava caminhando na mesma velocidade, meu primeiro pensamento foi: “putz, devo estar bem gordinha mesmo para ela me falar isso”. Seguido de: “é… as caminhadas precisam ser mais aceleradas mesmo.” Prosseguindo com: “putz, depois dos 40 é só ladeira abaixo mesmo, e essa pandemia, que merda”.

Na sequência, Marte deixou a letargia de quem está tendo um belo sonho (ou seria pesadelo?) produzido por Netuno – com quem está conjunto nesse momento – e foi acionado por Lilith em Touro, que faz sextil com ambos nesta semana. Foi como se o ritmo da batida, e da caminhada, se rompesse numa reviravolta.

Naquele momento, o pensamento que me invadiu foi: “o único Deus que vai te ouvir é um bem magro, quase esquálido, homem, heterossexual e branco, provavelmente”. Mais ou menos naquele tipo físico que Jesus costuma ser representado pelos europeus desde há muitos séculos, e que já sabemos que não ter nada a ver com as possibilidades históricas que cercam sua figura.

Mais uma quadra de caminhada, no meio de árvores e flores que afastam meus olhos dos carros e dos prédios da Asa Norte, e Lilith se exalta, graças à sua já próxima conjunção com o Sol em Touro. Começo a pensar em como a minha percepção sobre mim mesma e sobre meu corpo está permeada pelas exigências que constantemente ouvimos nós, todas as mulheres deste mundo.

Imagem bucólica das minhas caminhadas matinais.

“Seja magra. Gordura é feio, estrias é feio, celulite é feio. Seja jovem, velhice é algo horrível. Deusnoslivreeguarde de ficarmos velhas e gordas. Que homem vai nos querer velhas e gordas? Coisa mais triste uma mulher sozinha, qual o valor de uma mulher sozinha? Vocês estão aqui sozinhas? Tão bonita de rosto, mas você viu o quanto ela engordou nessa pandemia? Ela era tão bonita quando jovem, né?”

E naquele momento, Lilith aterrou, mais taurina do que nunca, jogando pro lado o Saturno leonino e suas eternas autocobranças por perfeição e reconhecimento: “e as Deusas?”, perguntou. Do que você está pedindo pra elas nos livrarem?

Espelho meu…

Toda a minha reflexão – ver a mim mesma pelos olhos alheios – desta manhã vem se construindo há alguns meses. Não tenho conseguido escrever, e talvez o tormento de Marte em Peixes afogado pela extrema sensibilidade netuniana nos últimos meses justifique em parte essa “falta de energia”, como expliquei a uma amiga e cliente que costuma ler o blog e disse, há algumas semanas, estar com saudades dos textos.

Como qualquer boa bruxa que se preze, a desmascarada que apontou para meu calcanhar-de-aquiles taurino – sim, eu caminho rápido para poder comer meu chocolate com café pós-almoço com menos culpa – conseguiu me impulsionar.

“Espelho, espelho meu, existe alguém na Asa Norte mais gorda do que eu?”, foi o que ouvi Lilith gritar, antes de dar uma gargalhada de raiva. Ao seu lado, Vênus em Áries cerrou os punhos e jogou lenha na fogueira: “mas quem ela acha que é pra me chamar de gorda? Nunca nem te vi mais magra!” O ritmo da caminhada nesse ponto era quase uma corrida, de fato.

Quem fala conosco no Espelho? Cena do desenho animado Branca de Neve.

Caminho mais uma quadra e a memória de uma cena emblemática da série que maratonei no final de semana – Mrs. America – retorna. Na cena, a poderosa, inteligente e respeitada Betty Friedan, autora do clássico feminista “A Mística Feminina”, perde o rebolado durante um debate e chama a ativista conservadora Phillys Schlafly de “Tia Má”, ou bruxa, na frente de centenas de estudantes.

E o que provocou essa reação emocional e contrária ao próprio discurso feminista de uma mulher reconhecida por sua racionalidade e capacidade intelectual? Ter ouvido da oponente que todas as feministas eram infelizes no casamento e que eram trocadas por mulheres mais jovens e não feministas pelos ex-maridos exatamente por isso. Detalhe: Friedan havia passado por um divórcio e ainda lidava com as dores – não sei se isso é um fato da vida real, mas na série faz sentido dramático.

Bonitas e cheirosas

Ao longo da série – calma, prometo poucos spoilers – uma das personagens, amiga íntima de Phillys, passa por uma reflexão interessante sobre os reais inimigos das mulheres conservadoras, geralmente identificadas como as mulheres feministas pelas contendoras.

Durante o congresso nacional de mulheres realizados nos anos 70 nos Estados Unidos, essa personagem tem uma revelação, ao ter que dividir o quarto com uma das representantes do movimento feminista e sua filha criança. Ela desmistifica suas ideias sobre as feministas serem amarguradas, feias, briguentas, abortistas, agressivas e… fedorentas!

Convenção Nacional das Mulheres, Houston, Texas, 1977. Foto de Jo Freeman.

Descobre que elas são gentis, até mais do que suas colegas donas-de-casa em certas situações. Que podem lhe acolher em momentos de dificuldade, que podem elogiar sua linda voz, que podem cantar com ela uma canção, que podem ser religiosas, casadas, mães dedicadas, esposas felizes, bonitas. E cheirosas.

Nós, espectadoras, descobrimos que tanto feministas quanto conservadoras brigam entre si, discordam e tentam sabotar umas às outras. E que tanto os homens conservadores quanto os progressistas fazem piadas horríveis sobre as mulheres e colocam as mãos em lugares não permitidos de seus corpos enquanto conversam “socialmente” com elas.

Os casos de assédio sexual nos partidos Democrata e Conservador comprovam as semelhanças. E podemos perceber ainda que os maridos de conservadoras e feministas, mesmo quando amorosos e respeitosos, têm dificuldades com o sucesso de suas esposas e não sabem lidar muito bem com a independência delas, ainda que alguns deles pareçam dispostos a aprender.

Com quem lutamos?

Conversar com amigas e clientes que atendo como astróloga sobre os temas do feminino está entre as minhas atividades favoritas. Somente nos últimos dias, atendi a duas mulheres incríveis, ambas com mais de 40 anos, e com questões relacionadas à maternidade e à vocação. Uma delas com duas filhas adolescentes, a outra com um cachorrinho recém-chegado à casa. Ambas já tendo passado por divórcios.

Também conversei com algumas colegas do curso de Psicologia Analítica do IJEP em nosso grupo de estudo semanal. E ainda passei alguns bons momentos papeando com uma amiga por telefone e com outra no jardim em frente ao meu prédio. Todas elas lindas, independentes e cheirosas.

Não houve conversa em que a relação com os homens não fosse o tema, mesmo que lateral. E as dificuldades entre as exigências díspares deles e nossas. E as frustrações pelas expectativas não atendidas, de ambos os lados. E os desejos por equilíbrio, harmonia e afetuosidade. E a herança que trouxemos de nossas mães e avós, e das dificuldades pelas quais elas passaram e ainda passam.

Contra quem estamos armando o exército? Cena do filme Pantera Negra.

Nesse momento, fico realmente pensando contra quem estamos lutando, afinal. Contra os homens que conhecemos? Ou contra o masculino em nós? Aquilo que Jung chamou de Animus e que Lyn Cowan sugeriu, nada sutilmente, que seja desmantelado enquanto conceito e prática?

Contra o amigo querido que ao me ver em uma ligação de uats, depois de alguns meses, me perguntou rindo porque eu estava com “esse cabelo de velhinha”? Confesso que levei uns 20 segundos para perceber que ele não se referia ao corte, mas aos cabelos grisalhos que deixaram de ser pintados durante a pandemia…

Ou contra a ginecologista que me perguntou, assim que entrei no consultório e antes que eu me sentasse à sua frente, quando eu ia voltar a pintar os cabelos, afinal eu sou “tão nova pra ter cabelo branco”?

Estação Pisciana

Pallas Atena transitando em Peixes se aproxima da minha conjunção Netuno-Marte, mas antes disso faz trígono com Sol e Lilith em Touro. Talvez seja o momento de pensar sobre quais lutas ainda valem a pena. E sobre quais são as estratégias mais interessantes de ação. Ainda que a emoção seja avassaladora, vale a pena dar vazão a ela de forma impulsiva?

Júpiter entra em Peixes ainda nesta semana e amplifica a nossa sensibilidade para os temas coletivos. No meu caso, ele está ativando o meu Meio do Céu, o que faz com que esse texto seja impossível de conter.

Fico pensando que a luta não pode ser, como me parece que tem sido, contra a nossa raiva e indignação por ainda não termos um lugar coletivo de igualdade, apesar de tanta luta.  Uma das minhas amigas queridas, uma canceriana sensível que tanto me ensina sobre a vida, me falava exatamente sobre o seu processo, ainda tão dolorido, de perceber a própria raiva. E de atribuir a todos os homens, incluindo aí os que ela não conhece ainda, as características de leviandade e falta de compromisso.

Estamos realmente lutando contra o fato de ainda estarmos discutindo as mesmas questões que mobilizaram nossas mães e tias nos anos 70 e 80? Contra uma cultura coletiva de opressão e violência que permite às próprias mulheres chamarem umas às outras de “bruxas” como se isso fosse a maior ofensa possível?

Contra um padrão estético impossível de seguir e que nos coloca, todos os dias, contra nós mesmas? E que nos faz odiar todos os sinais da passagem do tempo em nossos corpos, como se fosse nossa obrigação morrermos jovens, quando o que queremos é, talvez, chegar perto dos 100 anos com alguma qualidade de vida?

Vamos continuar tentando imitar a Barbie até quando?
Photo by Jen Theodore on Unsplash

Estamos em luta contra o fato de ainda não recebermos o mesmo que os homens que ocupam as mesmas funções e postos de trabalho que nós? Contra as evidências que apontam as mulheres como as mais prejudicadas no mercado de trabalho durante a pandemia? Contra os dados que mostram que as cientistas mulheres tiveram uma inacreditável baixa de produtividade, enquanto alguns de seus colegas homens conseguiram produzir mais durante o isolamento?

Reunindo as Deusas

Não podemos continuar acusando as mulheres de “gritarem demais” nos espaços de poder onde geralmente são ignoradas e têm a palavra cassada. Ou de serem “agressivas” e “difíceis” quando fazem valer a sua palavra e sua opinião com vigor. Ou de não conseguirem ser suficientemente “estratégicas” quando optam pela diplomacia. Ou de serem “exageradamente competitivas” quando simplesmente querem se realizar vocacionalmente.

Não podemos continuar nos acusando e deixando os outros nos acusar de “loucas” quando não cumprimos as expectativas alheias. Especialmente, quando dizemos não às determinações e aos desejos masculinos, sejam de chefes, pais, namorados, irmãos, amigos ou maridos. Simplesmente porque estamos tentando nos proteger.

Ou quando não seguimos as expectativas de um caminho de vida “normal”, o que significa não se casar, ou se casar com outra mulher; não ter filhos, deixá-los aos cuidados do pai, ou tê-los com outra mulher; não seguir o padrão estético hegemônico de tentar parecer jovem e permanecer magra a todo custo; não optar por carreiras e vocações tradicionalmente femininas como as profissões de cuidado.

Afastadas de nós mesmas, seja pelas frustrações internas ou pelas constantes críticas externas, estamos com dificuldades de olhar para o espelho e ver quem realmente está lá. E de acolher essa mulher tão maltratada da mesma forma como acolhemos as outras mulheres e aos homens.

Que tal aprender a acolher a mulher do espelho?
Photo by Stefano Pollio on Unsplash

Pallas Atena se aproxima da conjunção de Netuno com o meu Marte em Peixes, todos em sextil com o Sol e Lilith em Touro e em trígono com a posição natal de Vesta em Câncer, no meu mapa. Na caminhada de amanhã, se a faxineira desmascarada estiver no caminho, eu vou sorrir e desviar meus passos novamente. Acelerar ou diminuir a velocidade, conforme a necessidade.

E depois vou agradecer à Lilith e à Vesta por terem deixado ela verbalizar para mim essa mensagem das profundezas: eu posso caminhar no ritmo que eu quiser. Todas nós podemos.

Caminhe – ou corra – na velocidade que quiser.
Photo by Jonathan Chng on Unsplash

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