O poder de Lilith em Escorpião na voz abolicionista de Maria Firmina dos Reis

Poucos dias depois do horrível assassinato de João Alberto Silveira Freitas dentro do estacionamento do supermercado Carrefour localizado no bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre, eu publiquei um texto sobre a escritora Maria Firmina dos Reis no blog Maria Cobogó. João Alberto foi assassinado na véspera do Dia da Consciência Negra, em um crime que provocou uma grande repercussão social e política no Brasil por reacender o debate sobre o racismo.

Pichação feita por manifestantes na entrada de um supermercado Carrefour em Curitiba, em 20 de novembro de 2020, um dia depois do assassinato de João Alberto por seguranças de uma loja da rede em Porto Alegre. Foto de Guilherme BITTAR / AFP.

Meu pequeno artigo sobre a história dessa incrível precursora da literatura abolicionista e feminista brasileira foi escrito poucos dias antes da morte João Alberto. A intenção era, exatamente, celebrar o Mês da Consciência Negra ao tornar mais conhecido o pioneirismo da escritora negra que permaneceu praticamente esquecida pelo público e pela crítica literária até 1975.

Antes que alguma leitora questione, informo que não sou negra. Muito menos branca. Posso ser classificada naquilo que, no Brasil, convencionou-se chamar de cor “parda”. Ou seja, pessoas de descendência multiétnica, conforme denominam os europeus ou norte-americanos. Ou “miscigenada”, conforme parte do vocabulário nativo.

De qualquer forma, creio que minha simpatia e empatia pela história de Maria Firmina não possam ser explicadas apenas por uma semelhança ou diferença de nossos tons de pele – se é que empatia pode, realmente, ser explicada pelo tom da pele de alguém (muito provavelmente os racistas acreditam que sim…).

Detalhe de cor

Obviamente, não temos como saber quão diferentes são as cores de Firmina e a minha na escala hipermatizada brasileira que vai do negro ao branco. Há pouquíssimas imagens disponíveis da autora falecida em 1917, seis décadas antes do meu nascimento. Na imagem mais conhecida de Firmina, ela foi confundida com outra escritora brasileira do século XIX.

Ilustração de Maria Firmina dos Reis por Joana Lira para o livro “Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil” (2018), de Duda Porto e Aryane Cararo.

Fico me questionando, contudo, se saber desse detalhe cromático faria alguma diferença na aproximação espiritual, psicológica ou mesmo intelectual que desenvolvi com a escritora.

Ter lido sua principal obra – o romance Úrsula – mais de 160 anos depois de sua escrita me trouxe surpresa, alegria e a certeza de que não estamos sozinhas nesse mundo, por mais inusitadas que nossas ideias e ideais possam parecer aos nossos contemporâneos.

O fato é que, para além do fato de sermos brasileiras, mulheres e educadoras, Maria Firmina e eu compartilhamos algumas visões sobre a sociedade na qual nascemos. Ela, maranhense, filha bastarda de uma mãe alforriada; eu, gaúcha, filha de pais trabalhadores de classe média baixa.

A principal visão comum entre nós ressalta a importância de conceder espaço e respeito às vozes femininas silenciadas pela violência. E nisso, creio que a Lilith escorpiana de Firmina conversa de forma muito aberta e complementar com a minha Lilith taurina.

Bastarda e alfabetizada

Imaginemos como era a vida de uma mulher na sociedade brasileira no século XIX. Somam-se às dificuldades comuns de todas – por exemplo, a quase impossibilidade de alfabetização por falta de escolas, a proibição de participação na vida política ou a dificuldade de conseguir trabalho – a condição de bastarda e de filha de uma mulher negra alforriada, ex-escrava de um dos maiores comerciantes do Estado.

Imaginemos agora essa mulher, nascida em 11 de março de 1822, vivendo em São Luís do Maranhão. Alfabetizando-se sozinha durante a infância e a juventude (não há informações de que Firmina tenha estudado de modo formal), chegando à idade adulta e prestando um concurso para professora, no qual foi aprovada em 1847.

Conforme alguns relatos de historiadores, Firmina se recusou a ir receber a nomeação dentro de um palanquim – liteira onde as damas eram carregadas por escravos. Contrariando o conselho da família, ela vai a pé até o local onde foi nomeada servidora pública, depois de afirmar que “negro não é animal para se andar montado nele”.

Uma dama do século XIX na liteira, com os escravos que a carregavam. Bahia, 1860.

Com Quíron e Saturno em Áries, a disciplina interna e a necessidade de inovar, de abrir caminhos, de propor soluções são constantes na dinâmica psíquica da autora. Quanta força é necessária para uma pessoa aprender a ler sozinha? Quanta vontade é suficiente para uma mulher se candidatar a um cargo público em uma época em que a maioria das mulheres sequer conseguia trabalho fora de suas casas?

A “Mestra Régia”, título que as professoras ostentavam na época, lecionava em sua própria casa, em Guimarães, cidade litorânea do Maranhão. Um ano antes de se aposentar, em 1881, Maria Firmina fundou uma escola mista – para meninos e meninas – e gratuita, em um barracão de um senhor de engenho.

As próprias filhas do proprietário frequentavam a escola, que era um experimento considerado ousado na época por misturar os dois sexos e alunos de diferentes classes sociais. Obviamente, o experimento durou apenas um ano. E podemos imaginar as dificuldades enfrentadas…

Modéstia ou sarcasmo?

Consciente do próprio lugar na sociedade e das dificuldades que a literatura também reservava para as mulheres em uma sociedade patriarcal e machista, a autora assina a primeira edição do seu primeiro romance, publicado em 1859, apenas como “Uma Maranhense”.

No prefácio da obra, Firmina pede aos leitores e leitoras condescendência na leitura, apelando para “sentimentos maternos” e, ao mesmo tempo, torcendo para que sua publicação sirva de inspiração para outras mulheres. De forma irônica, ela destaca sua diferença em relação aos “homens ilustrados” que se dedicam à literatura.

Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem; com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.

Então por que o publicas? – perguntará o leitor.

Como uma tentativa, e mais ainda, por este amor materno, que não tem limites, que tudo desculpa – os defeitos, os achaques, as deformidades do filho – e gosta de enfeitá-lo e aparecer com ele em toda a parte, mostrá-lo a todos os conhecidos e vê-lo mimado e acariciado. (…)

Não a desprezeis, antes amparai-a nos seus incertos e titubeantes passos para assim dar alento à autora de seus dias, que talvez com essa proteção cultive mais o seu engenho, e venha a produzir coisa melhor, ou, quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras, que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrução mais vasta e liberal, tenham mais timidez do que nós.”

Abolicionista e Feminista

O romance Úrsula traz a história da jovem branca de mesmo nome, perseguida por um tio violento em uma sociedade patriarcal. Ao longo da obra, diferentes narrativas de mulheres oprimidas e agredidas por seus maridos detalham dramas e situações cotidianas de violência sofridas por mulheres brancas, e consideradas “livres” naquele contexto social.

Contudo, uma das personagens mais fortes do livro é a velha escrava Suzana, que trabalha na casa de Úrsula, e faz um relato minucioso de como era a sua vida feliz na África, antes de ser sequestrada por “bárbaros” e trazida à força para o Brasil.

Suzana também conta em detalhes as agruras e violências sofridas durante a viagem no navio que a trouxe ao Brasil. O mais interessante nesse ponto é que a obra de Firmina foi publicada 11 anos antes do famoso poema Navio Negreiro, de Castro Alves, que também tematiza o tráfico de escravos para o Brasil.

Foto de Marc Ferrez de um navio negreiro francês em 1882.

Porém, para além de vítimas dos homens da família ou do sistema econômico vigente, na literatura de Firmina as mulheres – negras ou brancas – aparecem como pessoas, dotadas de desejos, ideias, vontades e perspectivas próprias sobre o mundo em que vivem.

Mais do que tipos humanos descritos pelos homens com quem convivem, como na maioria das obras românticas, as personagens de Firmina conversam com as leitoras e mostram sua força por meio de atitudes que desafiam os opressores. São elas que narram suas histórias e expressam seu desgosto com o cotidiano violento no qual estão inseridas.

O pioneirismo de Firmina, portanto, está na sua visão da educação como direito de mulheres e dos mais pobres, na sua defesa das vozes silenciadas pelo horror da escravidão e no espaço que dá aos relatos femininos em suas obras.

Mergulho na escuridão

Infelizmente, não temos o horário de nascimento de Maria Firmina e até 2017 considerou-se que ela havia nascido em 1825. Mais recentemente, documentos compilados pela pela pesquisadora Dilercy Aragão Adler informam que a escritora, filha natural de Leonor Filippa dos Reis, entrou com um processo em 1847 para retificar sua data de nascimento para 11 de março de 1822.

Mapa Natal de Maria Firmina dos Reis, sem o horário de nascimento.

Parece bastante provável que alguém com o talento artístico de Firmina e a sensibilidade para temas sociais sobre os quais ninguém queria falar tenha nascido com Mercúrio, Vênus e Sol conjuntos em Peixes, em um belíssimo trígono com Lilith em Escorpião.

O mais interessante é que sua profundidade, empatia e ousadia para ultrapassar desafios cotidianos e falar de tabus sociais e da violência sofrida pelos marginalizados estava diretamente conectada à sua identidade e experiência pessoal como filha e neta de escravas.

A conexão de Peixes com o feminino escorpiano transparece ainda na brilhante estratégia de usar com propriedade as referências cristãs a fim de persuadir os leitores sobre a justiça de seus ideais ao longo de toda a obra.

Percebe-se que Lilith – muito provavelmente acompanhada da Lua escorpiana – está no mesmo grau de Vênus. E Plutão também está em Peixes. Uma combinação interessante para alguém que resolveu narrar de forma fiel os sofrimentos daqueles que vieram ao país nos porões dos navios negreiros.

Em Porto Alegre, protestos contra o racismo estrutural após o assassinato de João Alberto dentro do Carrefour. Foto de Diego Vara/Reuters.

Em harmonia com o Saturno de Áries, Marte em Leão indica que o processo criativo era uma necessidade psíquica para Firmina, como ela mesmo relata no prefácio de sua principal obra. O romance era como um “filho”, uma marca de sua identidade e de sua capacidade criativa, por meio do qual ela estava destinada a brilhar e a liderar.

Por fim, vale destacar o trígono entre Netuno e Urano conjuntos em Capricórnio com Júpiter, no primeiro grau de Touro. Entre outras coisas, o posicionamento revela que a projeção pública dos ideais próprios e a materialidade de suas criações inovadoras eram necessárias para Firmina.  

Úrsula é o produto exemplar de uma psique que buscou sua realização contra todas as possibilidades, aproveitando todas as pequenas chances que o mundo possa ter lhe oferecido.

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